A erva-mate, tão presente na cultura do sul do Brasil, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai, não é apenas uma planta de sabor amargo e propriedades estimulantes. Para o povo guarani, ela carrega em suas folhas uma origem sagrada.
Conhecida como ka’a, essa planta é envolta em respeito e simbolismo, tendo sido presente dos deuses para aliviar a dor, fortalecer a alma e unir os corações. A história da erva-mate não começa em mercados, nem em cuias de chimarrão ou tereré — começa nas matas, nas trilhas da espiritualidade indígena, em um tempo em que os humanos ainda estavam aprendendo a caminhar pela terra em harmonia com tudo que nela vive.
A lenda da origem da ka’a tem várias versões, mas todas giram em torno de um ponto comum: ela foi dada à humanidade como um presente divino, um gesto de amor e recompensa. Em uma das narrativas mais difundidas entre os guaranis, Tupã, o deus criador, desceu à terra disfarçado de andarilho.
Como era comum nas tradições indígenas, acreditava-se que os deuses podiam se manifestar sob a forma de humanos comuns, para testar a bondade dos homens e observar como estavam conduzindo suas vidas. Nesse dia, Tupã caminhava por uma floresta distante, onde vivia uma família humilde: um velho pai e sua jovem filha. A mãe havia falecido, e a filha cuidava do pai com dedicação incansável, abrindo mão de sonhos e juventude para garantir seu bem-estar. Ela era o alicerce daquela casa feita de palha e silêncio.
O andarilho foi recebido com hospitalidade. Apesar da escassez, o velho dividiu com ele sua comida, sua água e seu tempo. A filha, mesmo cansada, ofereceu-lhe descanso, acolhimento e gentileza. Durante a conversa, Tupã percebeu a tristeza discreta nos olhos da jovem e perguntou se ela desejava algo. Com humildade, ela respondeu que não queria riquezas nem beleza, apenas uma forma de cuidar do pai sem se afastar dele. Queria algo que os unisse e que permitisse ao velho viver seus últimos dias com dignidade e alívio.
Emocionado com tamanha generosidade, Tupã revelou sua identidade. Disse que aquela atitude não passaria despercebida e que, em troca de tanto amor e renúncia, ele deixaria um presente eterno para a família e para toda a humanidade. Na manhã seguinte, onde antes havia apenas terra, brotou uma planta de folhas verdes e vigorosas. Era a ka’a. Tupã ensinou como secar as folhas, como moê-las e como preparar uma infusão com elas. Disse que o chá daquelas folhas teria o poder de revigorar o corpo, clarear o espírito e fortalecer os laços entre as pessoas. Era uma bebida de partilha, que deveria ser tomada em roda, passada de mão em mão, como forma de lembrar que o valor está no coletivo, na comunhão, na escuta.
A bebida como elo sagrado
Mais do que um simples chá, a infusão da ka’a se tornou parte da alma guarani. O ritual de preparar o mate, de assoprar a bomba, de aquecer a água sem deixar ferver demais, de passar a cuia de mão em mão, é carregado de espiritualidade. É um momento em que o tempo desacelera e o diálogo se fortalece. A bebida tem função social, medicinal e simbólica. Entre os guaranis, não se bebe mate sozinho — a roda é essencial, porque nela se partilham não apenas goles, mas histórias, memórias e afetos.
A ka’a também é associada à coragem, à clareza e à disposição para enfrentar o dia. Por isso, muitas vezes é consumida logo pela manhã, antes das tarefas. Nas comunidades tradicionais, é comum que o mate seja servido antes de uma conversa importante, como uma forma de equilibrar os ânimos e preparar os espíritos. E mesmo em momentos de luto ou despedida, o mate está presente, como um elo que conecta os vivos entre si e com seus ancestrais.
Sabedoria natural e resistência
A erva-mate contém propriedades estimulantes, graças à presença de cafeína, teobromina e outras substâncias que aumentam a energia sem agitar excessivamente o corpo. Os guaranis já conheciam esses efeitos muito antes da ciência catalogá-los. A planta era usada também para tratar dores de cabeça, problemas digestivos, febres e até tristeza profunda. Era considerada uma planta de cura integral, que atua no corpo e no espírito. Além disso, o processo de preparo — do corte à secagem, da moagem à infusão — era cercado de cantos, rezas e intenções. Cada passo era feito com respeito, pois mexer com a ka’a era como tocar em um presente dos céus.
Com a chegada dos colonizadores, a erva-mate foi rapidamente incorporada à economia e transformada em produto de exportação. Grandes plantações surgiram, e a industrialização afastou o consumo da sua origem sagrada. No entanto, em muitas comunidades indígenas e rurais, o sentido ancestral da ka’a permanece vivo. Ainda se planta com a lua, ainda se colhe com cuidado, ainda se compartilha com afeto. O mate industrializado pode ser comprado em mercados, mas o verdadeiro espírito da erva-mate só é encontrado onde há tempo para a roda, escuta para a história e gratidão pela terra.
Simbolismo e identidade
A lenda da ka’a toca em elementos profundos da espiritualidade guarani: a generosidade, o cuidado com os mais velhos, a comunhão e a simplicidade como forma de grandeza. A filha que escolhe permanecer ao lado do pai, mesmo podendo seguir outros caminhos, representa o amor que não exige reconhecimento. E é justamente esse amor silencioso que é recompensado com um presente eterno. A planta nasce da terra, mas seu valor é espiritual. Ela não é apenas uma recompensa para aquela jovem, mas um presente para toda a humanidade — uma lembrança de que o cuidado transforma, de que a bondade deixa raízes.
Além disso, o próprio ato de beber juntos é um símbolo poderoso. Em uma cultura em que o coletivo tem mais valor que o individual, passar a cuia significa dizer: “estamos juntos”. Não há pressa, não há competição. O mate obriga a desacelerar, a esperar o outro, a se conectar. É antídoto contra o egoísmo e contra a pressa dos tempos modernos. Por isso, mesmo nas cidades, mesmo entre os não indígenas, o ritual do chimarrão ou do tereré mantém esse valor: o de criar um momento de encontro verdadeiro.
Considerações finais
A lenda da origem da erva-mate não é apenas um conto bonito. É um ensinamento ancestral sobre gratidão, respeito, amor e partilha. Em tempos em que o consumo é desenfreado, em que a pressa engole os rituais, lembrar que a ka’a nasceu de um gesto de cuidado é um convite à reconexão com aquilo que é essencial. Tupã não deu ouro, nem armas, nem poder. Deu uma planta. Simples. Verde. Amarga. Mas cheia de significado. Uma planta que cura, que fortalece, que une.
A jovem que pediu apenas poder cuidar do pai nos ensina que o verdadeiro valor está no amor silencioso, na presença que cuida, na renúncia que constrói. A resposta dos deuses veio em forma de folhas — e até hoje, essas folhas carregam em si esse espírito. Quando tomamos um mate, especialmente em roda, estamos não só consumindo uma bebida: estamos recriando um laço antigo, nos ligando aos primeiros povos, às florestas, aos ciclos da natureza e aos ensinamentos do sagrado.
A ka’a é a prova de que a espiritualidade não precisa de grandiosidade para ser profunda. Às vezes, ela está justamente naquilo que é simples, mas feito com intenção. E enquanto houver alguém passando a cuia, soprando a bomba e oferecendo um gole, a lenda da erva-mate continuará viva — nas mãos, nas bocas e nos corações de quem entende que compartilhar é o verdadeiro gesto de grandeza.