No coração da Cordilheira dos Andes e das florestas do sul do Chile e da Argentina, os mapuches, povo ancestral e resistente, preservaram uma história sobre duas forças primordiais que moldaram o mundo: Treng Treng e Kai Kai. Essas serpentes colossais representam o eterno embate entre vida e destruição, equilíbrio e caos, ensinando importantes lições sobre a relação entre os humanos e a natureza.
“Entre o rugido da água e o clamor da terra, Treng Treng e Kai Kai ainda disputam nossos destinos”, contavam os anciãos mapuches junto às fogueiras.
Quem são Treng Treng e Kai Kai
Na cosmogonia mapuche, Kai Kai Filu é a serpente da água, espírito do mar e das chuvas torrenciais, associada à destruição, à fúria das tempestades e à vingança contra a desobediência humana.
Treng Treng Filu, por outro lado, é a serpente da terra, guardiã dos seres vivos, defensora da harmonia e da preservação.
Elas personificam as forças naturais fundamentais, que coexistem em um eterno ciclo de confronto e renovação.
Curiosidade: “Filu” significa “serpente” na língua mapudungun.
A origem da disputa
Segundo a tradição, no início dos tempos, os humanos viveram em harmonia com a natureza. Contudo, com o passar das gerações, tornaram-se egoístas, desrespeitando os ciclos naturais.
Indignada, Kai Kai decidiu punir a humanidade:
- Levantou as águas dos mares e rios, ameaçando submergir toda a terra.
- Criou chuvas torrenciais e enchentes devastadoras.
Em resposta, Treng Treng, compadecido dos humanos e dos animais, ergueu montanhas e colinas para salvá-los da destruição.
Reflexão: A desarmonia com a natureza atrai conseqüências inevitáveis.
O grande dilúcio
Kai Kai lançou ondas gigantescas sobre a terra. Animais e homens fugiram para as colinas criadas por Treng Treng.
- Quem conseguiu chegar ao topo das montanhas sobreviveu.
- Quem ficou para trás foi engolido pelas águas.
A luta entre as duas serpentes durou dias e noites, até que a fúria de Kai Kai foi finalmente contida.
Curiosidade: O mito do dilúcio mapuche possui semelhanças intrigantes com narrativas de dilúcios em outras culturas, como a história de Noé na tradição judaico-cristã.
A formação da geografia
Os mapuches acreditam que as montanhas, os lagos e os vales foram moldados pela batalha entre Treng Treng e Kai Kai.
- Montanhas: São os refúgios erguidos por Treng Treng.
- Lagos e rios: São as marcas da fúria de Kai Kai.
Cada acidente geográfico carrega a memória desse confronto ancestral.
Reflexão: A natureza é a expressão viva dos antigos conflitos cósmicos.
O significado simbólico
O mito de Treng Treng e Kai Kai carrega profundas lições filosóficas:
- Kai Kai representa o poder destrutivo da natureza diante da arrogância humana.
- Treng Treng simboliza a proteção que a própria natureza oferece aos que vivem em harmonia com ela.
O conflito entre elas é eterno e cíclico, refletindo os desequilíbrios e as renovações naturais.
Citação mapuche: “No grito das águas e no suspiro das pedras, ecoa a história de nossos ancestrais.”
A visão cíclica do mundo
Para os mapuches, o mundo é regido por ciclos de destruição e renascimento.
- As inundações e as secas não são castigos, mas momentos de reequilíbrio.
- O respeito aos ciclos naturais é essencial para a sobrevivência.
Reflexão: A arrogância humana rompe a harmonia, mas a sabedoria reconhece a necessidade dos ciclos.
O legado de Treng Treng e Kai Kai
O mito moldou profundamente a cultura mapuche:
- Rituais de gratidão à natureza celebram Treng Treng.
- Cerimônias de propiciação são realizadas para aplacar Kai Kai.
- O respeito pelos elementos naturais permeia todas as esferas da vida.
Curiosidade: Em tempos de catástrofes naturais, muitos mapuches ainda evocam o equilíbrio entre Treng Treng e Kai Kai.
Comparativos com outras culturas
O mito mapuche encontra ressonância em outras tradições:
- Mito de Noé (Bíblia): Um dilúcio divino purifica o mundo.
- Mitologia suméria: Dilúcios enviados pelos deuses para destruir a humanidade corrupta.
- Mitologia nórdica: Jörmungandr, a serpente que circunda o mundo, está associada a desastres.
Essas semelhanças revelam uma preocupação universal com os limites da ação humana e as forças incontroláveis da natureza.
A representação das serpentes
- Kai Kai: é retratada como uma serpente aquática gigantesca, de olhos brilhantes e escamas reluzentes.
- Treng Treng: é vista como uma serpente rochosa, com corpo robusto e firme, ligada à estabilidade da terra.
Suas imagens estão presentes em esculturas, pinturas e nas histórias orais.
Curiosidade: Algumas comunidades esculpem figuras de serpentes em troncos de árvores para simbolizar proteção.
A presença de Treng Treng e Kai Kai hoje
Mesmo nos tempos modernos, a lenda das serpentes continua viva:
- Educação tradicional: Crianças mapuches aprendem sobre o respeito à natureza através do mito.
- Cerimônias espirituais: São realizadas para pedir proteção contra desastres naturais.
- Literatura e arte: Muitos artistas contemporâneos se inspiram na história para criar obras que celebram a identidade mapuche.
Reflexão: O mito é um lembrete constante da necessidade de viver em harmonia com a terra.
Lições de Treng Treng e Kai Kai para o mundo moderno
A história das serpentes mapuches oferece importantes ensinamentos:
- Respeitar a natureza é vital para a sobrevivência.
- O desequilíbrio traz consequências inevitáveis.
- A verdadeira sabedoria está em reconhecer nossos limites.
- A força está na cooperação com as forças naturais, não na sua dominação.
Citação mapuche: “A terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra.”
Treng Treng, Kai Kai e o respeito às águas e montanhas
O mito de Treng Treng e Kai Kai influenciou profundamente a relação dos mapuches com a natureza:
- Montanhas: Consideradas locais sagrados onde Treng Treng protege os humanos. Muitas cerimônias espirituais são realizadas no topo dos cerros.
- Rios e mares: Vistos com respeito e temor, pois carregam a força de Kai Kai. Antes de atravessar um rio ou navegar, os mapuches tradicionalmente pedem permissão aos espíritos das águas.
- Ofertas à natureza: Pequenos rituais de agradecimento, como deixar folhas, pedras ou palavras de gratidão, são comuns em locais associados às serpentes.
Essas práticas refletem a compreensão de que todos os elementos naturais são vivos e merecem respeito.
Reflexão: Honrar montanhas e águas é honrar a história da criação e preservação da vida.
Conclusão
A lenda de Treng Treng e Kai Kai transcende o tempo, ecoando até hoje como um chamado à consciência ecológica e ao respeito pela vida.
Em um mundo onde a exploração desmedida ameaça os equilíbrios naturais, a história das serpentes mapuches nos convida a lembrar que somos parte de um ciclo muito maior do que nossa ambição individual.
Entre montanhas e rios, entre ventos e tempestades, Treng Treng e Kai Kai ainda sussurram àqueles que sabem ouvir: o verdadeiro futuro pertence a quem respeita o passado e caminha em harmonia com a terra viva.
Resgatar esses ensinamentos é mais do que preservar uma tradição; é reconhecer que a sobrevivência humana depende da capacidade de escutar e respeitar as vozes antigas que falam através das águas, das pedras e dos ventos.