Entre todas as figuras que compõem o rico universo das religiões afro-brasileiras, Nanã é uma das mais respeitadas e enigmáticas. Ela representa a ancestralidade, a maturidade, a morte e o renascimento.
Seu poder está nas águas calmas e profundas, na terra molhada, no lodo fértil onde nasce a vida. Em um país como o Brasil, onde fé, resistência e cultura se entrelaçam, Nanã encontrou um reflexo espiritual em Santa Ana, a mãe da Virgem Maria, símbolo de sabedoria, tradição e proteção familiar.
Neste artigo, vamos entender quem é Nanã dentro das tradições iorubás e afro-brasileiras, como ela se relaciona com os ciclos da vida e da morte, e por que sua associação com Santa Ana carrega tanto sentido espiritual e simbólico.
Quem é Nanã?
Nanã, também chamada de Nanã Buruku ou Nanã Buruquê, é considerada uma das orixás mais antigas dentro do panteão iorubá. É a senhora da lama primordial, das águas paradas, dos pântanos e da fertilidade ancestral. Sua figura está profundamente ligada aos mistérios da criação e da morte, sendo reverenciada como aquela que recebe os espíritos na partida e os prepara para o renascimento.
Em muitas narrativas, Nanã foi responsável por moldar o corpo humano com o barro da terra, antes que o sopro da vida fosse dado por Olodumarê (o Deus supremo). Por isso, ela é considerada mãe da humanidade, ligada ao início e ao fim de todos os ciclos.
Ao mesmo tempo que carrega a serenidade das águas paradas, Nanã também impõe respeito. Ela é vista como uma senhora de idade avançada, sábia, paciente, mas inflexível quando o assunto é justiça e disciplina. Sua presença nos terreiros de Candomblé ou Umbanda é sempre envolta em reverência, pois ela representa o próprio tempo — que tudo transforma, que tudo devolve ao seu lugar.
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Elementos e simbologia de Nanã
A simbologia de Nanã é rica e cheia de significados. Seu principal elemento é a lama dos pântanos, que representa tanto o nascimento (matéria-prima do corpo) quanto o retorno à terra (morte física).
Outros elementos ligados a ela são:
- Águas paradas (lagoas, brejos, pântanos)
- A terra úmida
- A argila
- O silêncio
Suas cores mais comuns são o roxo, o branco e o cinza, cores que evocam respeito, espiritualidade e sabedoria. Entre seus símbolos ritualísticos, o mais conhecido é o ibiri — um bastão feito com folhas de palmeira entrelaçadas, usado para conduzir espíritos e realizar rituais de passagem.
Nanã também é associada à figura da avó, da ancestral feminina que guarda os segredos antigos e orienta com palavras calmas, mas firmes. Não é uma entidade que se manifesta com agitação ou impulso — sua energia é lenta, profunda e cheia de mistérios.
O culto a Nanã no Brasil
No Brasil, Nanã é cultuada principalmente no Candomblé Jeje-Nagô, com grande força na Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. Ela é considerada uma das grandes “mães” do panteão, estando acima de muitas outras divindades em termos de antiguidade e hierarquia espiritual.
Por sua ligação com os mistérios da vida e da morte, Nanã está presente em rituais que envolvem desencarne, ancestralidade, cura espiritual e fertilidade. É comum que médiuns e filhos de santo que trabalham com Nanã tenham uma personalidade mais reservada, reflexiva e ligada à espiritualidade profunda.
Na Umbanda, sua presença é menos frequente, mas ainda assim respeitada, especialmente nas linhas que trabalham com elementos da natureza ligados à terra e à água.
O sincretismo religioso e a associação com Santa Ana
Durante o período da escravidão no Brasil, os africanos foram proibidos de cultuar abertamente seus orixás. Para preservar sua espiritualidade, passaram a associar suas divindades a santos católicos, criando o que hoje chamamos de sincretismo religioso.
Essa prática foi mais do que uma estratégia — foi um ato de resistência, inteligência espiritual e sobrevivência. Ao ver nos santos católicos traços semelhantes aos de seus orixás, os africanos puderam continuar rezando, celebrando e ensinando suas crenças, mesmo sob repressão.
No caso de Nanã, a associação mais comum é com Santa Ana, a avó de Jesus Cristo e mãe de Maria. A razão para isso está tanto no papel materno e ancestral que ambas ocupam quanto na imagem de sabedoria e respeito que representam.
Quem é Santa Ana?
Santa Ana (ou Sant’Ana) é uma figura central no catolicismo, embora não tenha uma presença direta nos evangelhos canônicos. Sua história é contada principalmente por meio de textos apócrifos, como o Protoevangelho de Tiago, que narra como ela e seu marido Joaquim foram pais de Maria, mesmo após anos de infertilidade.
Por isso, Santa Ana é vista como a mãe da mãe de Jesus, e simboliza a origem da linhagem sagrada de Cristo. É padroeira dos avós, das mulheres mais velhas e das famílias. É também invocada por mulheres que desejam engravidar ou proteger seus filhos e netos.
Sua imagem clássica é de uma senhora com vestes longas, muitas vezes segurando a pequena Maria nos braços ou ensinando-a a ler. A imagem transmite cuidado, paciência e sabedoria — valores que ecoam fortemente com a figura de Nanã.
Similaridades entre Nanã e Santa Ana
A conexão entre Nanã e Santa Ana vai além da aparência de idosas e do papel materno. Ambas compartilham um mesmo arquétipo espiritual: o da mulher anciã, guardiã dos segredos da vida, símbolo de proteção familiar e transmissão de sabedoria entre gerações.
Além disso, há algumas coincidências simbólicas marcantes:
- Ambas estão associadas à vida e à morte: Nanã molda o corpo com a lama, e Santa Ana é o início da linhagem de Cristo, que venceria a morte.
- Ambas são ligadas à maternidade tardia: Santa Ana foi mãe em idade avançada; Nanã está ligada à fertilidade, mesmo em condições difíceis.
- São reverenciadas como figuras de firmeza e fé: não são entusiásticas ou impulsivas, mas pacientes, sábias e constantes.
Essa ligação foi reconhecida pelos primeiros povos afrodescendentes no Brasil, que passaram a cultuar Nanã no dia de Santa Ana, 26 de julho, como forma de manter viva sua devoção ancestral.,
Como Nanã é cultuada no Brasil?
As homenagens a Nanã acontecem em datas próximas ao final de julho, mas também podem variar de acordo com o calendário litúrgico dos terreiros. Seus rituais são mais silenciosos, meditativos e voltados para pedidos de cura, de sabedoria e de equilíbrio espiritual.
Algumas das oferendas mais comuns incluem:
- Milho branco
- Canjica
- Feijão fradinho
- Inhame cozido
- Flores roxas ou brancas
- Velas nas cores roxa, branca ou lilás
Os rituais costumam ser feitos perto de lagos, pântanos, brejos ou até mesmo em lugares com terra úmida. A entrega das oferendas é feita com muito respeito, e é comum que os participantes fiquem em silêncio ou cantem pontos suaves, pedindo força e bênçãos à mãe ancestral.
Oração popular para Nanã e Santa Ana
Muitas pessoas, principalmente aquelas que frequentam tanto o Candomblé quanto a Igreja Católica, rezam para Nanã e Santa Ana como uma forma dupla de proteção. Veja uma oração simbólica que une os dois arquétipos:
“Mãe Nanã, senhora do barro e das águas calmas, envolva-me com sua sabedoria e sua luz. Ensina-me a esperar com paciência e agir com firmeza.
Santa Ana, mãe de Maria e avó de Jesus, proteja minha família e abençoe minhas decisões.
Que a força das avós me acompanhe e me guie. Que nenhuma dor me vença. Que nenhuma pressa me confunda. Assim seja.”
Considerações finais
A associação entre Nanã e Santa Ana é uma das mais simbólicas dentro do sincretismo religioso brasileiro. Mais do que uma questão de fé, é um reflexo profundo da cultura, da resistência e da sabedoria ancestral que os povos africanos trouxeram ao Brasil — e que, apesar de séculos de repressão, continuam vivos, pulsantes e inspiradores.
Nanã representa o tempo, o ciclo da vida, o silêncio que cura, o barro que forma e acolhe. Santa Ana representa o lar, a família, a raiz espiritual. Ambas, juntas ou separadas, ensinam que há beleza na maturidade, força na calma e poder na ancestralidade.
Enquanto houver rios calmos, avós que contam histórias, e filhos de santo que cantam para as águas paradas, Nanã continuará presente. E com ela, a certeza de que a sabedoria não envelhece — apenas amadurece.