Dentro do vasto universo das religiões afro-brasileiras, poucos orixás despertam tanto respeito e reverência quanto Obaluaê.
Conhecido como o senhor da terra, das doenças e da cura, ele caminha entre o sofrimento humano e a restauração do corpo e da alma.
Em meio à repressão histórica da religiosidade africana no Brasil, Obaluaê encontrou no catolicismo a figura de São Lázaro, também símbolo de dor, doença e redenção.
Esse sincretismo, longe de ser uma simples substituição, representa a força da fé em momentos de vulnerabilidade. Neste artigo, vamos mergulhar na trajetória simbólica e espiritual de Obaluaê e compreender como ele se relaciona com São Lázaro — dois nomes, duas histórias, uma mesma energia de transformação e cura.
Quem é Obaluaê?

Obaluaê, também conhecido como Omolu em algumas nações do Candomblé, é o orixá ligado às doenças, à saúde, à cura e ao ciclo da vida e da morte. Seu nome significa algo como “rei, senhor da terra” em iorubá. Ele rege os processos de adoecimento e também as transformações que levam à regeneração — tanto do corpo quanto do espírito.
A energia de Obaluaê é densa e poderosa. Ele carrega o mistério dos sofrimentos humanos, mas também a sabedoria de quem conhece profundamente o caminho da cura. É por isso que ele é tão temido quanto respeitado. Seus filhos e devotos sabem que sua presença representa silêncio, introspecção, mas também força para renascer.
Obaluaê é aquele que toca o sofrimento para depois trazer alívio. Nas histórias e rituais, ele é muitas vezes visto como alguém que foi rejeitado, doente, coberto de chagas — e que se transforma em um ser luminoso, símbolo de superação.
Representação e elementos de Obaluaê
Obaluaê é representado com o corpo coberto por palhas da costa, chamadas azê, que escondem seu rosto e suas chagas. Essa cobertura não é apenas estética, mas um símbolo de mistério, respeito e proteção contra o olhar direto dos mortais.
Ele carrega também um xaxará, um instrumento feito com palha, búzios e contas, que é usado tanto para varrer os males quanto para transmitir axé (energia vital). É com ele que o orixá “varre” as doenças e as energias negativas de seus filhos.
Outros elementos associados a ele incluem:
- O elemento terra, de onde vêm tanto as doenças quanto os remédios naturais.
- Pipoca (doburu), uma de suas comidas preferidas, que representa a transformação e é usada em diversos rituais de limpeza.
- Velas nas cores roxa, branca, preta ou palha natural.
- Locais ermos, matas, cemitérios e praias desertas, onde sua presença espiritual é mais sentida.
Obaluaê e Omolu: duas faces de uma mesma força
É comum que Obaluaê e Omolu sejam tratados como se fossem dois orixás diferentes, mas na verdade eles são dois aspectos de uma mesma divindade, como se fossem o jovem e o velho.
- Obaluaê é a manifestação mais jovem, ligada ao renascimento, à superação das doenças, à energia ativa da regeneração.
- Omolu é a versão mais velha, ligada ao fim do ciclo, à morte, à sabedoria profunda adquirida com o tempo.
Ambos atuam na mesma energia, regendo a saúde, a morte, a passagem, a transformação e a ancestralidade.
O culto a Obaluaê no Brasil
No Brasil, Obaluaê é reverenciado principalmente nas nações Ketu, Jeje e Angola, com rituais que variam de acordo com a tradição. Suas festas costumam ser silenciosas, sem muitos toques de atabaques, e realizadas com muita seriedade e introspecção.
As pipocas estouradas na areia quente são uma das oferendas mais tradicionais ao orixá. Elas simbolizam as doenças sendo eliminadas, a pele transformada, o corpo aliviado da dor. Em rituais de limpeza espiritual, médiuns usam a pipoca para “varrer” energias ruins e clamar pela cura.
No Candomblé, Obaluaê ocupa lugar de destaque entre os orixás mais antigos, sendo considerado um dos “pais do mundo”, junto com Nanã e Oxalá. Já na Umbanda, ele atua como chefe de falange, comandando espíritos de cura e sendo evocado para trabalhos de desobsessão, reequilíbrio energético e auxílio aos enfermos.
A origem do sincretismo com São Lázaro
Durante a escravidão, os africanos foram forçados a abandonar publicamente suas crenças. Para continuar seus cultos, associaram seus orixás a santos católicos com características semelhantes. Assim nasceu o sincretismo religioso.
No caso de Obaluaê, o santo que mais se aproximava de sua imagem era São Lázaro, conhecido como o patrono dos leprosos e doentes. Ambos compartilham os temas da dor física, da exclusão social, da paciência no sofrimento e da fé que traz cura.
Esse sincretismo se firmou com o tempo, especialmente nas regiões do Recôncavo Baiano e do Rio de Janeiro, onde até hoje a imagem de São Lázaro é reverenciada por fiéis que também acreditam em Obaluaê, sem qualquer conflito espiritual.
Quem foi São Lázaro?
Na tradição cristã, existem dois Lázaros com histórias marcantes:
- Lázaro de Betânia – Irmão de Marta e Maria, amigo de Jesus, que foi ressuscitado após quatro dias morto. É símbolo de fé e ressurreição.
- O mendigo Lázaro – Personagem da parábola contada por Jesus (Lucas 16:19-31), que vivia coberto de feridas, à porta de um homem rico, e após a morte foi acolhido por Deus no céu.
O Lázaro sincretizado com Obaluaê é geralmente o segundo — o sofredor, o marginalizado, o doente. Na iconografia católica, ele aparece deitado no chão, com cães lambendo suas feridas. Sua imagem evoca compaixão, misericórdia e cura.
No sincretismo, essa representação encontra eco em Obaluaê, que também foi coberto de chagas, rejeitado e depois transformado em símbolo de poder e renascimento.
As festas para Obaluaê e São Lázaro
O dia mais tradicional de Obaluaê é 16 de agosto, mesma data dedicada a São Roque, outro santo ligado à proteção contra doenças. No entanto, o dia 29 de julho, dedicado a São Lázaro no calendário católico, é também celebrado por muitos devotos de Obaluaê, principalmente na Bahia.
Na Igreja de São Lázaro do Bairro da Federação, em Salvador, a festa de janeiro dedicada ao santo reúne milhares de fiéis, que sobem a colina descalços, vestidos de branco ou palha, para agradecer curas ou fazer promessas. Ali, o sincretismo é explícito: é uma festa católica, mas cheia de elementos do Candomblé.
Muitos vão à missa e depois participam dos rituais afros. Levam pipoca, flores, velas e vestem trajes brancos. É a fé do povo, vivida com naturalidade, onde o santo e o orixá caminham juntos.
Oferendas e rituais
As oferendas a Obaluaê são feitas com cuidado e respeito. Além da pipoca, podem ser oferecidos:
- Inhame cozido com mel
- Feijão fradinho
- Milho branco
- Água de coco
- Velas roxas, brancas ou pretas
- Flores do campo
- Pequenas cruzes feitas de madeira ou palha
Essas oferendas são deixadas em locais silenciosos, como matas, cemitérios (com orientação adequada) ou cantos de casas que recebem o orixá. Em muitos casos, rituais de limpeza com pipoca são feitos diretamente sobre o corpo do consulente, acompanhados de preces, pontos cantados e defumações.
Obaluaê na Umbanda
Na Umbanda, Obaluaê é tratado com muito respeito e costuma atuar nas linhas de cura espiritual e saúde mental. Seus médiuns relatam uma vibração introspectiva, forte e acolhedora, que chega devagar e limpa os ambientes de forma profunda.
Ele é evocado para tratar:
- Depressão, angústia, insônia
- Doenças físicas ou crônicas
- Processos obsessivos espirituais
- Questões relacionadas à culpa, medo e perdão
É comum que ele atue junto a entidades da linha dos pretos-velhos ou dos caboclos curadores, formando um elo de auxílio entre o plano físico e o plano espiritual.
Considerações finais
A ligação entre Obaluaê e São Lázaro é uma das expressões mais comoventes da espiritualidade brasileira. Em ambos, vemos a figura do sofredor que não desiste, do corpo machucado que encontra cura, da dor que dá lugar à fé. A simbologia do sofrimento que se transforma em bênção é o fio condutor dessa devoção tão viva nos terreiros, igrejas e lares brasileiros.
Obaluaê ensina que a dor tem um propósito, que a cura é um processo, e que a fé é o caminho entre um e outro. E São Lázaro, com seu corpo ferido e sua alma elevada, reforça essa mensagem com ternura e compaixão.
No Brasil, onde a vida nem sempre é fácil, a fé nesses dois “curadores” continua firme. E enquanto houver alguém acendendo uma vela, estourando pipoca ou subindo a ladeira de São Lázaro em agradecimento, a energia de Obaluaê permanecerá presente, curando feridas visíveis e invisíveis com sua sabedoria ancestral.
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