No coração das florestas, rios e pampas da América do Sul, ecoa uma lenda ancestral, passada de geração em geração pelas comunidades guaranis: a criação da humanidade por Tupã. Mais do que um mito, é uma celebração da profunda ligação entre o ser humano, a terra e o cosmos.
“Do barro amassado pela chuva e pelo vento, Tupã modelou nossos corpos e soprou em nós o espírito da vida”, dizem os antigos xamãs.
Quem é Tupã
Tupã é a principal divindade criadora na mitologia guarani. Diferente de outros deuses, não reside no céu nem na terra, mas manifesta-se através dos elementos da natureza — no trovão, na chuva, no vento e na luz.
Para os guaranis, Tupã não era apenas um criador distante, mas uma presença constante, viva nas forças que regem o mundo.
Curiosidade: “Tupã” é também a palavra guarani para “trovão”.
A criação da terra e dos elementos
Antes da existência da terra, havia apenas escuridão e silêncio. Tupã, junto de Arasy, a deusa da lua e da fertilidade, desceu dos céus e pousou sobre uma ilha sagrada no meio do oceano primitivo.
Ali, eles moldaram:
- O Sol (Kuarasy) para trazer a luz.
- A Lua (Jacy) para iluminar a noite.
- As estrelas (Porangí) para guiar os homens.
- Os ventos, as águas e as montanhas para formar a terra habitável.
Reflexão: Para os guaranis, a criação é um ato de amor entre forças complementares.
A modelagem dos primeiros humanos
Usando o barro das margens dos rios, Tupã moldou os primeiros seres humanos:
- Rupa, o primeiro homem.
- Sypave, a primeira mulher, conhecida como “a mãe de toda a humanidade”.
Depois de moldá-los, Tupã soprou sobre eles o “ruã”, o sopro vital, dando-lhes vida, consciência e emoções.
Citação guarani: “O barro sente, respira e fala quando Tupã lhe dá alma.”
As primeiras leis
Tupã não apenas criou os seres humanos, mas também lhes deu orientações sobre como viver:
- Respeitar a natureza como irmã.
- Viver em harmonia com todos os seres.
- Praticar o bem e evitar a ganância.
Essas leis não eram apenas regras sociais, mas condições para manter o equilíbrio sagrado do universo.
Curiosidade: A palavra “teko porã” em guarani significa “viver bem”, conceito fundamental para os povos originários.
A origem dos males
Embora Tupã tivesse criado um mundo perfeito, logo surgiram as primeiras desobediências.
Espíritos malignos, como Anhanguera e Tau, espalharam discórdia, egoísmo e desrespeito.
Tupã, entristecido, não destruiu sua criação, mas permitiu que os humanos tivessem liberdade para escolher entre o bem e o mal.
Reflexão: A liberdade humana é tanto um presente quanto uma responsabilidade.
A conexão com a natureza
Para os guaranis, tudo o que existe é parente:
- As árvores são irmãs.
- Os rios são veias da terra.
- O vento é o suspiro de Tupã.
Cada ato de desrespeito à natureza é visto como um atentado contra a própria família espiritual.
Curiosidade: Muitos rituais guaranis incluem oferendas de frutas, flores e folhas aos espíritos da mata.
O papel dos xamãs
Os pajés ou karaí são os intermediários entre os humanos e Tupã.
- Curam doenças através de cânticos e ervas.
- Interpretam sonhos como mensagens divinas.
- Conduzem rituais para manter a harmonia espiritual.
Reflexão: A sabedoria dos xamãs é herança direta da criação original.
Rituais de gratidão
A gratidão a Tupã é expressa em diversas cerimônias:
- Nhemongarai: ritual de iniciação das crianças.
- Oguata porã: celebração do caminho bom.
- Oferendas nas florestas e rios: para renovar a amizade com os espíritos.
Esses rituais reforçam o ciclo de reciprocidade entre humanos e natureza.
Curiosidade: Em muitas aldeias, o amanhecer é saudado com cânticos para agradecer a Tupã pela vida.
Comparativos com outras culturas
O mito guarani apresenta semelhanças com outras tradições:
- Gênesis (Bíblia): Deus molda Adão do barro.
- Mitologia suméria: Deuses criam o homem do barro para cuidar da terra.
- Mitologia asteca: Humanos são moldados de massa de milho.
Essas convergências mostram uma percepção universal da origem humilde e sagrada da humanidade.
Tupã e a visão de mundo guarani
Para os guaranis:
- O universo é vivo e sagrado.
- A terra é nossa mãe, não propriedade.
- O bem-estar individual depende da harmonia coletiva.
Essa visão orienta até hoje sua organização social, espiritualidade e resistência cultural.
Citação guarani: “Nossa casa não tem paredes; é a mata que nos abriga.”
Tupã e a esperança
Mesmo diante das dificuldades trazidas pela história, os guaranis mantêm viva a esperança:
- De reencontrar o “Yvy Marã Ey”, a terra sem males.
- De viver em paz, em comunhão com Tupã e a natureza.
Reflexão: A busca pela terra sem males é também a busca pelo reencontro com a origem pura da humanidade.
A importância dos sonhos na cultura guarani
Para os guaranis, os sonhos são uma forma de comunicação direta com Tupã e os espíritos ancestrais.
- Sonhar com água indica purificação e renovação espiritual.
- Sonhar com animais revela mensagens sobre o equilíbrio da vida.
- Sonhar com florestas representa a proteção e o acolhimento da natureza.
Os pajés interpretam os sonhos da comunidade, ajudando a guiar decisões importantes, como o momento certo para plantar, caçar ou iniciar uma jornada.
Curiosidade: Algumas aldeias realizam encontros matinais para compartilhar sonhos e refletir sobre seus significados.
Reflexão: Ouvir os sonhos é ouvir as vozes da criação.
O papel das músicas e danças nos rituais
Músicas e danças são partes essenciais dos rituais guaranis dedicados a Tupã:
- Cantos de gratidão celebram a criação e a fertilidade da terra.
- Danças circulares representam a harmonia entre todos os seres.
- Instrumentos tradicionais como o mbaraká (chocalho) e a taquara (flauta) são usados para invocar as forças espirituais.
Essas expressões artísticas reforçam a conexão emocional e espiritual com o universo, lembrando que a vida é um ciclo contínuo de celebração e respeito.
Curiosidade: Cada dança possui um significado simbólico, muitas vezes relacionado aos elementos da natureza.
Lições de Tupã para o mundo moderno
O mito de Tupã ensina que:
- A humildade é a base da verdadeira grandeza.
- Respeitar a natureza é respeitar a si mesmo.
- A liberdade é inseparável da responsabilidade.
- A vida é um presente sagrado que deve ser honrado.
- A escuta interior, através dos sonhos e da música, é essencial para a sabedoria.
Citação guarani: “Somos barro que canta e sonha sob a proteção de Tupã.”
Conclusão
A lenda de Tupã moldando a humanidade do barro é mais do que uma explicação sobre a origem dos homens; é uma mensagem sobre a essência da vida.
Em tempos modernos, em que a desconexão com a natureza e os valores comunitários cresce, a história de Tupã nos lembra que a verdadeira sabedoria está em reconhecer nossa fragilidade, nossa dependência e nossa responsabilidade com o mundo que habitamos.
Assim como o barro moldado pelas mãos do criador, nossas vidas ganham forma, significado e beleza quando vivemos em harmonia com a terra, com os outros e com o espírito da criação que ainda ecoa nas matas, nos rios e no coração dos povos originários.
Redescobrir Tupã é redescobrir a voz da terra, a canção do vento e a dança eterna da vida — uma herança que pulsa viva, convidando todos a lembrar que somos parte de algo muito maior e mais sagrado do que nossos próprios desejos passageiros.